Van Grogue entrou, naquele entardecer de segunda-feira, no bar do Bafão onde, com um gesto ao proprietário atento, comunicou sua intenção de saciar-se de cachaça e cerveja.
Depois de ingerir, numa talagada, o conteúdo do seu copinho habitual de pinga, ele notou que havia um pessoal diferente reunido com o gerente bancário Célio Justinho, marido da raivosa Luisa Fernanda.
Eram dois homens claros, de estatura elevada, um deles já passando dos 60 anos, porém magro e o outro mais novo, que se destacava pelo abdome abaulado, impossível de ser disfarçado pela camisa larga e florida, que escorria sobre o bermudão bege.
Um deles dizia:
-You cannot get carried away by the temptation of the devil.
E o outro traduzia para Célio Justinho que, fascinado, ouvia atento:
– Você não pode se deixar levar pela tentação do demônio.
– Because he tries to maliciously trying to take him to error, sin.
– Pois ele o tentará maldosamente buscando levá-lo ao erro, ao pecado.
Com um copo transbordante de cerveja numa das mãos, o pregador prosseguia:
– The devil whispers in your ear trying to end his life. He has a lot of envy and hate you.
– O capeta sussurra na sua orelha buscando acabar com a sua vida. Ele tem muita inveja e ódio de você.
Não se interessando pela conversa e nem mesmo desejando interrompê-la, Van de Oliveira, se apossou da garrafa de cerveja, do copo limpo, e caminhando em direção à mesa do canto, perto da porta, onde costumava ficar, sentou-se lentamente.
Van Grogue ingeriu um gole e, assim como que num passe de mágica, plim-plim, desconectou-se do ambiente.
Vestindo um calção azul, uma camisa branca com bolso do lado esquerdo, sandálias de couro, fivelas cromadas, o menino caminhava ao léu, pela rua principal da cidade.
Ele prosseguia devagar, olhando tudo, de um lado para o outro, entre os transeuntes apressados, que iam e vinham, vivenciando aquela azáfama do dia a dia.
A criança parou defronte uma loja de armarinhos, onde lá dentro havia um casal de meia idade.
Atrás do balcão, o homem, à direita da mulher, media um tecido verde com o metro amarelo de madeira. Eles conversavam entre si, mas ambos olhavam para o menino estancado na calçada.
Impelido, o menor iniciou a caminhada para dentro do salão. A mulher, ante a aproximação do estranho questionou-o:
– O que você quer?
Sem ter o que responder o guri viu-se embaraçado, tenso. O homem então perguntou:
– De onde você veio?
– A minha avó mora ali na esquina.
O casal se olhou e, o homem conseguindo identificar a pessoa citada, acalmou a companheira, que mais a vontade, fixou o olhar no menino. Então o homem perguntou:
– Você conhece o Pedrinho?
Sem esperar a resposta, e sob os protestos da mulher, o comerciante fez o garoto passar por uma abertura lateral, na qual uma cortina de pano verde escuro servia de porta, encaminhando-o assim para os fundos da loja.
Ao andar sozinho pelo corredor o menino ouvia alguém que falava numa língua estranha:
– The books are on the table.
O garotinho foi se aproximando até que pòde ver dentro de um quarto, cuja porta e janela estavam abertas, um adolescente todo vestido de branco, sentado sobre a cama. O mocinho recostado no travesseiro grande, lia e relia a lição de inglês.
Quando percebeu a presença daquele estranho o estudante perguntou ao pai que estava lá na loja;
– Quem é pai?
E de lá, o homem respondeu:
– É um vizinho. Um coleguinha seu.
– But where’s the book? – continuou o aluno, olhando o forasteiro medroso, da cabeça aos pés. Em seguida disse:
– Sente naquele banquinho. De onde você vem?
Enquanto explicava que era neto da mulher que morava na esquina, o visitante viu que aquela pessoa, com muita dificuldade, procurava se levantar da cama.
O pequeno e curioso forasteiro nunca tinha visto uma pessoa deficiente.
Com bastante esforço o estudante levantou-se, deixando ver que seu corpo, pálido e magro, não tinha o braço direito e que as pernas, e também os pés, eram atrofiados.
– Espere ai que eu já volto. – disse o jovem, depois de apoiar-se no par de muletas, que pegara da cabeceira da cama.
Enquanto ficou só, o menino pôde ouvir as vozes que vinham da loja.
Algum tempo depois, sacolejando o aluno do ginasial entrou no quarto, sentou-se na cama, ajeitou o travesseiro às suas costas e prosseguiu com a lição:
– But you, what you want from me?
Vendo que a lengalenga não passaria daquilo e sentindo-se mal com o zunzunzum vindo da loja, o jovem visitante comunicou seu desejo de ir-se embora. E sem esperar por qualquer resposta retirou-se.
Quando o menino passou pelos comerciantes que ainda estavam atrás do balcão, ele ouviu a mulher dizer:
– Mas já vai? É tão cedo ainda…
No boteco do Bafão, Van de Oliveira Grogue reconectava-se com o meio ambiente.
– Note that the addiction can take you to disease, epilepsy report. Quit it already. – dizia o pastor com o copo de cerveja na mão.
O companheiro do pregador traduzia para Célio Justinho e Bafão que estavam atentíssimos:
– Veja que o vício pode levá-lo à doença, à epilepsia. Saia disso já.
Van Grogue levantou-se da mesa, caminhou cambaleante até o balcão, para pagar a conta e sair, quando o pregador, olhando para ele, disse em português:
– Arrependa-se! Saia dessa vida louca enquanto é tempo!
Para o espanto geral Van Grogue, sacando os caraminguás contados para pagar a despesa, respondeu:
– O quê!? Eu não quero nem saber.
Depois de passar o dinheiro ao Bafão, e massageando o braço direito, ele afirmou com voz poderosa, ao sair:
– Hoje vai dar águia na cabeça meu amigo. Já ouvi até o apito do trem.
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