Quebrando o vidro

Donizete Pimenta e Dani Arruela, numa tarde quente de domingo, resolveram fazer um churrasco. Era especial; a churrasqueira fora colocada na sarjeta, defronte a morada deles, donde, além de degustarem os sabores da maminha e da chuleta, observariam os transeuntes.
Ao som das modas de viola, que vibravam no rádio do automóvel, mantido com as portas abertas, metade dentro da garagem e metade na calçada, o casal parecia tranquilo sem se importar muito com os avanços e latidos perturbadores do cão Border Terrier Bed que, assustadiço, perseguia os eventuais caminhantes que ousassem passar, naquele momento, por aquele trecho da rua.
Com certa alegria Dani Arruela percebeu o velho alto, magro, que calçando chinelos havaianas, calça marrom, camisa social bege puída, caminhando a passos curtos, pelo meio da via, ia, como sempre, buscar seu leite e pão no botequim da esquina.
– E aí, como vai, seu Zé Laburka? Vamos mastigar uma carninha? – perguntou com alegria a Arruela.
Laburka, lembrando-se da dentadura, parou defronte a churrasqueira, acertou o volume dos aparelhos de surdez, mantidos dentro dos pavilhões da orelha, e falando com voz grave, baixa, mais parecida com os zumbidos dos besouros rola-bosta, respondeu:
– Mais tarde. Agora tenho que buscar o leite. O cheirinho tá bom. A brama tá gelada?
– Aqui seu Zé, não tem enrosco. Conosco quase ninguém podemos – disse entrando alegremente na conversa o Donizete Pimenta.
Zé Laburka seguiu seu caminho até a esquina; entrou no estabelecimento recém reformado, que recebera portas novas de vidro, indo diretamente ao cesto onde havia pães, tomou o pegador de macarrão, escolheu alguns filões, ajeitou-os com delicadeza num saco plástico, capturou um litro de leite, uma garrafa pequena de pinga, e um maço de cigarros. Ao passar pelo caixa ordenou:
– Marca na minha conta. Quando receber a aposentadoria eu, ocê já sabe, pago tudinho.
Tirando a caneta da orelha direita, o caderno de fiado do lado da caixa registradora, Antonov rabiscou a ocorrência debaixo do nome do freguês.
Já fora do estabelecimento, quando atravessaria a rua, um sujeito encorpado, espadaúdo, vestido com a camisa do Palmeiras, passando lentamente com a bicicleta, ao se aproximar do Laburka, gritou atirando na direção dele um tijolo imenso:
– Safadista desjuramentado! Até quando vai enganar as virgens decaídas? Toma o que é teu maligno das quebradas!
Zé Laburka apesar de sentir a rigidez do lombo, as dores nos joelhos, a fraqueza dos olhos e o latejar intenso do coração, feito um gato, saltou pro lado oposto donde vinha o projétil.
O que diria ele ao Antonov quando, embasbacados, viram a pedra destruir o vidro frontal da casa?
Do breve ajuntamento de curiosos diante dos estilhaços jacentes na calçada não saiu outro comentário mais enfático do que o lamento choroso do dono:
– Ai Jesuis!
Depois dos vários e vários minutos seguintes ao estardalhaço, na dispersão das testemunhas, Zé Laburka passando pelo casal churrasqueiro festivo, ouviu a inquirição da Arruela:
– O que foi aquilo seu Zelão?
– Um retardado passou de bicicleta e tacou uma tijolada no vidro, lá na esquina. Quebrou tudo – informou o idoso, sem parar a caminhada.
Donizete Pimenta e Dani Arruela riram em silêncio. O domingo estava perfeito e completo. Não haveria outro melhor.

Sobre Fernando Zocca

Fernando Antônio Barbosa Zocca é brasileiro, casado, advogado e blogueiro, publica seus textos na Internet há mais de 10 anos tendo iniciado no site usinadeletras.com.br. Foi funcionário da prefeitura municipal de Piracicaba por seis anos. Advogou na comarca de Piracicaba por mais de 20 anos e hoje pratica a caminhada, o ciclismo e a corrida. Em 1982 publicou seu primeiro romance Rosas para Ana.
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