O braço

Perceba bem como são as coisas: estudos de especialistas mostram que cenas de violência transmitidas pelos filmes, tanto nos cinemas, quanto nas TVs, teriam o condão de provocar nas crianças e adolescentes comportamentos agressivos.

Ao contrário outros estudos dizem que pouca ou nenhuma influência teriam, no comportamento adolescente, ou infantil as tais cenas de agressão mostradas nos filmes.

Na dúvida é bom tomar cuidado. Principalmente com os doidinhos, doidinhas e assemelhados que pululam aos milhares em nossa sociedade.

E agora então com o aparecimento desses jogos de videogames com as atrocidades mil que banalizam a agressão o abuso da força, da tirania, e da opressão os cuidados podem ser redobrados.

Mas há mais ou menos sessenta anos passados, por volta de 1961, os adolescentes daqueles dias também estavam sujeitos às imagens dos filmes grandiosos como El Cid, o herói Rodrigo Díaz de Vivar que foi um cavaleiro castelhano e senhor da guerra na Espanha medieval. Lutou com os exércitos cristãos e muçulmanos durante sua vida, tendo ganhado o título árabe de honra “al-sīd”, que iria evoluir para El Cid, e também o apelido espanhol de El Campeador. Ele nasceu em Vivar del Cid, um vilarejo próximo à cidade de Burgos. Conforme explica a Wikipédia.

Então não era muito raro as crianças e pré-adolescentes inspirados nas cenas heroicas do cinema, concretizarem, nas suas brincadeiras, momentos como os vistos nos filmes.

Vai daí que numa tarde de domingo, quando a família tradicional, classe média, residente na região central da cidade, reunia-se para receber, com a degustação dum grandioso, supimpa café do tarde, composto por um vasto e variadíssimo cardápio suculento, os dois importantes visitantes especialmente vindos dos Estados Unidos, um dos filhos (o tal já era maroto naquela época), do doutor dentista disse ao seu pai, um cirurgião dentista detalhista, perfeccionista, meticuloso, mas tão meticuloso, que até os paquímetros usados pelos metalúrgicos nos trabalhos de torno, pareciam genéricos:

– Senhor meu papai, conhece ou já ouviu falar, sobre a molecada do bairro que anda brincando pelas ruas de capa e espada? Eles fazem, com ripas e tábuas, espadas e escudos iguais aos que veem nos filmes dos gladiadores. Formam turmas, hordas, correndo pra cima e pra baixo, aos gritos, brandindo suas armas; o ajuntamento de moleque é tão intenso que apavora as comadres do quarteirão.  

Pigarreando depois de ingerir uma xícara de café com leite e deglutir o brioche fresquinho, o vetusto cirurgião respondeu:

– Eu já falei pra você maneirar essa língua. Ainda bem que as visitas não falam o português. Não compreenderiam os disparates seus e dessa gente subnutrida, subdesenvolvida e besta ao extremo.

Depois desse “sabão” no moleque, a conversa fluiu amena, em inglês (a esposa do cirurgião era professora do idioma), sobre outros vários temas como as corridas de automóveis, tendo como destaque o piloto James Clark Jr (Jim Clark) e a política do presidente John F. Kennedy nos Estados Unidos.

Lá pelas tantas, ao entardecer, a visita retirou-se com agradecimentos e mesuras mil.

– Thank you very much for your welcome, dear brothers. We will now return to the United States, but by ship. (Muito obrigado pela acolhida, queridos irmãos. Voltaremos agora aos Estados Unidos, mas de navio) – disse um deles visivelmente agradecido.

Enquanto a dona da casa retirava a mesa pondo a louça na pia, o doutor professor cirurgião chamou o filho ao quarto e retirando de cima do guarda-roupa um facão de cortar cana disse a ele:

– Se você quiser mesmo fazer como os gladiadores e seus amiguinhos da rua, deve agir produzindo algo útil, que te dê dinheiro. Isso que te presenteio hoje é um instrumento, semelhante ao dos filmes, com o qual você poderá ganhar o sustento da vida.

O moleque, de queixo caído, bestificado, não dormiu naquela noite. Mas resolveu guardar, como lembrança, o presente dado pelo pai naquela noite inesquecível.

Quando se tornou adulto em meados dos anos 1970, o jovem, já com emprego fixo, recém casado, estando a esposa esperando o primeiro filho, levando-a, numa tarde, às pressas ao hospital onde receberia o atendimento especializado, teve seu carro atingido por outro dirigido por pessoa que não respeitou a sinalização da via preferencial.

A mulher do moço, num ataque de histeria, dizendo, aos gritos, que perderia o filho, exigia providências contra a pessoa maligna que não respeitara as leis do trânsito.

Bom, com o bafafá armado, polícia e ambulância chegando, trânsito congestionado, xingamentos mil de ambos os envolvidos, o mocinho filho do senhor professor doutor cirurgião dentista, quando soube que o motorista não era habilitado, e que pelo bafo de cana que exalava, estava ainda mais bêbado que não sei o quê, num surto de ira, lembrou-se do pai e do presente que lhe dera há muito tempo atrás.

Entrando então no seu carro, mandando a mulher calar a boca e tirando de baixo do assento traseiro o facão de cortar cana, avançou sobre o ébrio que antevendo a agressão que sofreria, com aquela arma branca, ergueu, num gesto de defesa, o braço esquerdo, decepado inapelavelmente na altura do cotovelo.

No final o natimorto foi enterrado sob os lamentos dos pais e da família. O agredido usando prótese, que garante não lhe ser confortável, trabalha hoje no serviço público municipal onde, com muito esforço, tenta redigir seus relatórios com uma única mão.

O senhor professor e esposa após atingirem a nonagésima década de vida ascenderam aos céus onde estão até hoje.

O mocinho maroto, depois de separado da esposa tenta, aos trancos e barrancos, manter o oitavo ou nono relacionamento afetivo.

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Sobre Fernando Zocca

Fernando Antônio Barbosa Zocca é brasileiro, casado, advogado e blogueiro, publica seus textos na Internet há mais de 10 anos tendo iniciado no site usinadeletras.com.br. Foi funcionário da prefeitura municipal de Piracicaba por seis anos. Advogou na comarca de Piracicaba por mais de 20 anos e hoje pratica a caminhada, o ciclismo e a corrida. Em 1982 publicou seu primeiro romance Rosas para Ana.
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