Amor Platônico

Ele já passara dos 60 e ela dos 80 anos. Os cabelos brancos deles ali refletidos na janela do restaurante davam a noção daquela espécie de amor platônico.
O velhote obeso degustava uma Coca-Cola light, mas ela, aparentemente alheia ao mundo que os rodeava, equilibrando os óculos de aros delgados no narigão adunco segurava com certa elegância, a bengala fina.
Eles praticamente já não tinham mais assuntos com que pudessem entreter-se. Por isso ambos olhavam, quase sem ver, as pessoas que entravam e saiam do salão tomado pelo burburinho.
O pacto que ele fizera há muitos e muitos anos, com os céus, em troca da serenidade da sua consciência, fora de que cuidaria dela até os últimos dias das suas vidas.
Então, mesmo sem nada ganhar o velho a acompanhava por todos os lugares por onde ela desejasse ir. O pagamento das despesas vinha dos proventos que o marido dela deixara em decorrência da morte.
Mas naquela tarde, ali no restaurante ocupando solenemente a mesa e observando o movimento, ambos deixaram, por alguns instantes, de focalizar a inevitável e preocupante ciência do embarangamento geral das próprias constituições corpóreas.
As pelancas dos braços dela, a barriga flácida e proeminente dele, os dentes de ambos corroídos pela saliva quase secular, amarelados e disformes, noticiavam que momentos tristes posteriores à longa senectude, não tardariam.
Mas eis que, atravessando a membrana imaginária envolvente do casal silencioso, surge a exuberância duma loura graciosa. E quando a moça falava, ele, ao tentar responder, não o fazia com a certeza, nem a segurança absoluta, mas sim com o vergonhoso temor que lhe faziam emergir, os olhares desconfiados e ciumentos da antiga senhora.
A moça, certamente, por mais que tentasse, jamais quebraria o elo que os vinculava.
Ela, a lourinha ingênua sabia que eram mãe e filho único. Mas não tinha a menor noção de que, quarenta anos atrás o agora ancião, diante dum bate-boca comum entre mãe e pai, desesperando-se, e tomando as dores da mamãe, avançara contra o progenitor matando-o com uma garrafada.
Freud rotularia e arquivaria o caso como sendo um legítimo e abafadíssimo processo de Édipo Rei.
Aos parentes e vizinhos a versão vigente, até os dias atuais, foi a de que o velho cirurgião dentista, embriagando-se mais uma vez, chegara da rua tão bêbado que, perdendo o equilíbrio, precipitara-se contra o solo tendo morte instantânea.
É claro que os mexeriqueiros, com aquelas línguas incontroláveis, não deixaram de espalhar que partilhar o apartamento com o velhote ocorreria somente depois do passamento natural da antiga e respeitosa senhora. E isso, meu amigo, certamente, não ocorreria sem antes o transcurso dum longo e demorado passar do tempo.

Sobre Fernando Zocca

Fernando Antônio Barbosa Zocca é brasileiro, casado, advogado e blogueiro, publica seus textos na Internet há mais de 10 anos tendo iniciado no site usinadeletras.com.br. Foi funcionário da prefeitura municipal de Piracicaba por seis anos. Advogou na comarca de Piracicaba por mais de 20 anos e hoje pratica a caminhada, o ciclismo e a corrida. Em 1982 publicou seu primeiro romance Rosas para Ana.
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